sexta-feira, 28 de junho de 2013

Coração Valente: uma análise à luz de princípios democráticos


A análise deste filme foi feita a partir de alguns princípios da proposta de democracia habermasiana. 



1 Sinopse 

A trama do filme é construída em torno da história de vida de um garoto escocês (William Wallace), durante a ocupação da Escócia pela Inglaterra, sob o Rei Eduardo I. Tanto eles lutavam contra os ingleses, quanto seus clãs lutavam entre si, pois o trono escocês estava vazio e cada clã almejava colocar um sucessor.

Na primeira cena do filme, o jovem Wallace se depara com alguns camponeses de sua aldeia mortos por enforcamento por soldados do exército inglês, e deixados dependurados em um celeiro rústico; dentre as vítimas, estavam alguns de seus colegas de infância. Essas imagens deixam o garoto profundamente chocado e impressionado.

Revoltados com essa situação, os líderes dos clãs se reúnem e decidem lutar contra os ingleses. O resultado desse enfrentamento, porém, é desastroso, resultando, inclusive, na morte do pai do jovem William. O garoto, mais uma vez, é chocado com a visão da morte, e das consequências cruéis de estarem debaixo da tirania dos nobres ingleses, nascendo em seu coração o forte desejo por liberdade.

Após o sepultamento de seu pai, o jovem Wallace é levado para morar com seu tio, homem culto e guerreiro, que lhe preparou física e intelectualmente. O ensino do latim, do francês, bem como o uso da espada, e provavelmente estratégias de guerra, fizeram parte desse preparo. Já adulto, o jovem William volta à sua aldeia, mais precisamente às suas terras, encontrando-a como deixara: desolada e desocupada.

Wallace participa de uma festa de casamento, onde reencontra Murron, uma garotinha que havia lhe dada um cravo, na ocasião do sepultamento de seu pai, mas que se tornara uma belíssima mulher. A festa, porém, é interrompida pela chegada de uma guarnição do exército do rei da Inglaterra, liderada por um nobre inglês, que vem reivindicar o direito de prima nocte.

Esse direito consistia em que, na primeira noite de núpcias de um casal do povo, a noiva deveria dormir com um nobre inglês, por isso prima nocte (primeira noite). Esse “direito” fora reinstituído pelo rei da Inglaterra, como forma de “misturar” o sangue escocês com o de nobres ingleses, visando a enfraquecer os fortes laços tribais que existiam entre eles, pois, segundo ele, o grande problema da Escócia é que “estava cheia de escoceses”.

Diante dessa reivindicação, o noivo revolta-se e reage, porém é rapidamente dominado pelos soldados. Diante da iminência de ver seu marido morto, a noiva se submete à reivindicação do comandante da guarnição. Isso tudo aconteceu diante do olhar revoltado de todos os que estavam presentes, inclusive de William Wallace, aumentando sua indignação contra a Inglaterra.

Para evitar que algum nobre reivindicasse o direito de prima nocte, casa-se em segredo com Murron.

Os dois vivem, por breve tempo, um relacionamento às escondidas, quando um dos soldados da guarnição militar inglesa instalada na aldeia de Wallace e Murron, tenta manter relações sexuais à força com Murron, ajudado por dois outros. Ela resiste e fere seu agressor. 

Wallace também presencia a tentativa de estupro e reage lutando contra os três agressores de sua esposa. Tenta fugir com ela, porém a guarnição é alertada. Diante desse obstáculo, Wallace coloca Murron em um cavalo, orientando-a a fugir para o local onde eles costumavam se encontrar. Ele segue lutando contra os soldados ingleses, sendo ajudado pelos aldeões. Consegue fugir e vai para o local combinado.

Em sua tentativa de fuga, Murron é interceptada e derrubada do cavalo por soldados ingleses, sem que Wallace tenha percebido. Aprisionada, ela é amarrada a um poste de madeira, onde tem seu pescoço cortado pelo comandante da guarnição, como punição e advertência para os demais. Alertava ele que, quem agride um soldado do rei, age como se estivesse agredindo o próprio rei. Esse ato também tinha o objetivo de atrair Wallace de volta, e ser pego em uma emboscada. 

Wallace realmente retorna, porém, ajudado pelos aldeões, consegue vencer a guarnição, e invade o forte onde se encontrava o comandante. Amarra-o no mesmo poste em que Murron fora amarrada e morta; corta-lhe a garganta, da mesma forma que ele tinha cortado a garganta de sua esposa. Diante dessa vitória, os aldeões, lembrando-se do Wallace pai, que era um guerreiro e líder dos escoceses contra a tirania dos ingleses, aclamam William Wallace. 

A notícia da vitória contra aquela guarnição do exército inglês logo se espalha, e outros clãs se unem a William Wallace, que se torna seu líder, desencadeando a rebelião contra a ocupação inglesa. Os escoceses, liderados por William Wallace, conseguem algumas vitórias significativas, inclusive a subjugação da cidade de Iorque, governada pelo irmão do rei, que é decapitado e tem sua cabeça enviada ao Rei Eduardo I, em Londres.

O rei fica muitíssimo preocupado com os rumos que a rebelião estava tomando, decide propor trégua e o estabelecimento de paz entre a Inglaterra e a Escócia. Temendo ele mesmo ir e ser morto, ou mesmo seu filho, resolve enviar sua nora, a princesa Isabelle, nobre francesa que se tornara esposa do filho do Rei Eduardo I, por conveniência política. Esse casamento foi arranjado pelo próprio rei como forma de ter na França uma aliada no seu empreendimento de dominação da Escócia.

William reage com ceticismo à proposta de trégua e paz oferecida pelo rei. Revela à princesa porque não acredita na proposta, relatando brevemente sua própria experiência e de seu povo, subjugado peça tirania e crueldade do rei. O assessor da princesa dirige-se a ela, em latim, pressupondo que Wallace não iria entender, e lhe diz que tudo aquilo era mentira; porém, William entende o que fora dito, e responde em latim e em francês, para surpresa e espanto dos dois enviados do rei.

Esse encontro deixou a jovem princesa muito impressionada diante do que vira e escutara de Wallace. Aquele que era considerado pelo rei como selvagem e líder de selvagens, na verdade era um homem inteligente, que além de ser um grande líder guerreiro e estratégico, também era culto.

Ao retornar para Londres, a princesa descobre toda a artimanha do Rei Eduardo I, com vistas a subjugar os escoceses; inclusive, que seu encontro com Wallace para propor trégua e paz, fora, na verdade, uma estratégia para ganhar tempo e posicionar seus aliados no campo de batalha. Ofendida e decepcionada, a princesa passa a ajudar Wallace, alertando-lhe sobre os planos do rei. Em um desses encontros, já apaixonada, eles se amam e ela concebe.

William Wallace torna-se uma lenda com suas vitórias contra os ingleses. Porém, seus feitos e fama lhe angariam muitos inimigos, não só da parte dos ingleses, mas também de alguns nobres escoceses, que lhe armam uma cilada para entregá-lo nas mãos do Rei Eduardo I. William Wallace é preso, “julgado” e condenado por traição, sendo executado por decapitação.

Sua decapitação e a distribuição de partes de seu corpo em pontos estratégicos, com a intenção de desestimular qualquer rebelião por parte dos escoceses, tiveram efeito contrário. Robert de Bruce, o principal nobre que concorria ao trono escocês, passa a liderar os escoceses para expulsar os ingleses. Esse nobre, apesar de ter traído Wallace em determinado momento, admirava-o profundamente, por causa da paixão que Wallace tinha por seu povo e da paixão que o povo tinha por ele. A Escócia reconquista sua liberdade, e William Wallace torna-se uma lenda.

2 Análise 

O filme “Coração Valente” se constitui em uma rica ilustração do anseio humano por liberdade, e o que é viver sob um regime não democrático. Por essa razão, a mensagem central do discurso de William Wallace para recrutar guerreiros que se unissem a ele contra a Inglaterra era a reconquista da liberdade. E foi após bradar Freedom! (liberdade), e não mercy! (misericórdia) — como os companheiros esperavam — que ele foi decapitado. 

O filme baseia-se em fatos e personagens históricos, ocorridos entre os anos de 1280 e 1296, em uma Escócia ocupada pelos ingleses, sob o reinado de Eduardo I (que reinou de 1272 a 1307). Os ingleses aproveitaram a vacância do trono escocês, a falta de coesão entre os clãs, e seu consequente enfraquecimento, devido às guerras que travavam entre si, para invadirem e ocuparem a Escócia. 

Essas datas colocam a trama no século XIII, em plena Idade Média, em uma sociedade caracterizada pelo feudalismo implantado por Guilherme, o Conquistador, após ter invadido a Inglaterra em 1066. (SÓ HISTÓRIA).

Eduardo I era um rei despótico e cruel, que lançava mão da violência através de seu exército para resolver os conflitos. O principal problema nesse tipo de governo é a falta de legitimidade, sobretudo quando se trata da relação com países, em que um, mais forte, tenta impor seu domínio sobre outro mais fraco. Essa subjugação é feita mediante o uso do poder militar, característica marcante de governos que não têm aceitação popular, sobretudo por parte de um povo subjugado e explorado.

O “poder da caserna”, que o Estado detém, referido por Habermas (1997) é evidente em toda a trama do filme. O rei inglês (que aqui representa a figura do poder do Estado, do poder administrativo), exerce o controle e aplica a sanção coercitiva sobre os povos que subjuga, e sobre sua própria gente, através do exército e das armas. Neste caso, no entanto, esse poder não representava o poder comunicativo do povo, pois a eficácia do poder comunicativo só é possível no contexto democrático. A trama do filme acontece em contexto onde o poder soberano era do rei, o grande governante que ditava as regras.

Essa postura de Eduardo I feria a tradição de resolução de litígios nas comunidades primitivas e tribais por meio de mediadores, detentores de poder social, ou seja, poderes emanados de sua posição social na comunidade, conforme nos ensina Habermas (1997). Principalmente porque, nesse contexto, eram os reis e sacerdotes, que detinham esse poder legitimado pelas crenças religiosas e míticas comuns aos integrantes dessas comunidades, que validava a legitimidade da interpretação das leis, bem como das decisões por parte de seus detentores.

Dos três poderes apresentados por Habermas (1997), a saber: o poder comunicativo, o poder administrativo, e o poder social, como característicos do Estado democrático de direito, apenas os poderes administrativo (político) e social eram evidenciados. Porém, essencialmente diferentes de seus correspondentes no Estado democrático de direito, pois não estavam sujeitos a qualquer espécie de controle externo.

Percebe-se que o poder comunicativo, aquele que dá espaço, por meio dos princípios do discurso e parlamentar, para o cidadão expor e reivindicar seus anseios, era ausente. O poder administrativo (aqui representado pelo rei e nobres investidos de poder) claramente é quem ditava as regras, não sendo resultado da vontade do povo, não era “retroalimentado” pelo poder comunicativo. Na linguagem de Habermas (1997), ele se autoprogramava. Era seguido nessa esteira pelo poder social — não do povo —, mas da realeza e nobreza, que manipulavam as circunstâncias no sentido de satisfazer seus próprios interesses.

O Rei detinha o poder político, que era o “exercício da dominação legal”, considerando que ocupava essa posição de forma legal, e reconhecida como tal pelos súditos, praticamente como um direito que lhe fora dado pelo próprio Deus. Todavia, essa dominação não era legítima, como já foi deixado claro. Pois não obedecia a alguns princípios apresentados por Habermas (1997), que caracterizam a legitimidade do poder administrativo.

Se no Estado democrático de direito existe a tensão entre a legitimidade do direito e a legitimidade da ordem de dominação, mesmo o poder sendo legitimado por meio de “um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais.” (HABERMAS, 1997, p. 171), no contexto de dominação apresentado no filme “Coração Valente” essa tensão é potencializada pelo despotismo real e pela ausência de qualquer consciência de soberania popular, ou de direitos fundamentais.

Percebe-se ainda, na decisão do Rei de instituir o direito de prima nocte, que suas decisões eram tidas como lei, pois não havia, como no Estado moderno, a divisão dos três poderes para colocar “rédeas” no exercício do poder, e preservar o povo dos ditames do governante. Portanto, desconhecia-se a obrigatoriedade de o poder administrativo agir conforme um sistema de direitos democraticamente institucionalizado. A palavra do soberano era a lei.

Além disso, esse “direito” não fora estabelecido conforme o princípio do discurso, pois de acordo com a teoria dos discursos “As normas jurídicas válidas estão afinadas com normas morais”. E ainda: “[...] as normas jurídicas também revelam a pretensão de concordar com as normas morais, portanto de não infringi-las”. (HABERMAS, 1997, p. 196).  Além do mais, pelo princípio do discurso, qualquer norma de ação deve ter sua validade submetida “ao assentimento daqueles que, na qualidade de atingidos tomam parte em ‘discursos racionais’.” (HABERMAS, 1997, p. 199).

O filme deixa bem patente que, uma norma instituída sem a observância de preceitos morais, não é considerada legítima; será ou ignorada, ou rechaçada. Nesse caso do direito de prima nocte, a violação de princípios morais era clara. Era um direito que só atendia aos interesses egoístas dos nobres ingleses, suscitando, tão somente, fortes desejos de vingança.

É possível observar no pano de fundo histórico da trama de “Coração Valente”, elementos que iriam constituir, a partir do século XVI, o Absolutismo Monárquico; e, a partir do século XVIII, a organização política conhecida por Estado-nação. Dentre eles estão: a clara tendência de centralização do poder nas mãos do rei; e do outro lado, a forte “ideia de pertença a um grupo com uma cultura, língua e história próprias, a uma nação [...]” (INFOPÉDIA), bem como o delineamento da unidade político-territorial. 

No entanto, os elementos constitutivos do Estado como Instituição, ou ainda, o “sistema constitucional-legal e a organização que o garante”, conforme ensinado por Bresser-Pereira (2009, p. 4), parecem estar ausentes.

Finalmente, quando se analisa a relação de Wallace com o povo escocês — apesar do caos administrativo em que se encontrava a Escócia — percebe-se a importância da legitimidade do poder. Embora não fosse rei, o povo escocês tinha na figura de Wallace o líder ideal. Nesse sentido, ele exercia um forte poder social sobre seus concidadãos, não apenas devido aos seus feitos, e à memória que o povo tinha de seu pai, mas também porque ele personificava os anseios da coletividade; e, mesmo depois de sua morte, essa influência continuou muito forte, sendo evocada por Robert de Bruce, ao convocar seu povo para lutar contra o domínio inglês, com o argumento de que, assim como eles lutaram ao lado de Wallace, lutassem também ao seu.

3 Ficha Técnica 

a) Gênero épico;
b) Local de filmagem: Irlanda;
c) Produtores: Bruce Dave, Mel Gibson e Alan Ladd Junior;
d) Diretor: Mel Gibson, que também atuou como Wallace;
e) Roteirista: Randall Wallace;
f) Estúdios: 20th Century Fox, Paramount Pictures, Icon Entertainment International;
g) Lançamento: nos Estados Unidos em 1995, e distribuído no Brasil pela Fox Filmes;
h) Premiações: Ganhou Oscars de melhor filme, melhor diretor, melhor fotografia, melhor maquiagem e melhores efeitos sonoros, bem como o Globo de Ouro de melhor diretor. 

Enriqueça a análise com base em seus conhecimentos. 
Comente, Compartilhe, Divulgue!




REFERÊNCIAS

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O Estado necessário para a Democracia possível na América Latina. 2009.
FICHA TÉCNICA (adaptada) de: http://pt.shvoong.com/books/1721693-cora%C3%A7%C3%A3o-valente/  Acessada em: 28/05/2013, com adaptações.
HABERMAS, Jünger. Reconstrução do direito: princípios do Estado de direito. In: Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tomo 2,  p. 169 a 240. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
INFOPÉDIA. Estado-nação. Disponível em: http://www.infopedia.pt/$estado-nacao Acessado em: 28/05/2013.
SÓ HISTÓRIA. A monarquia inglesa. Disponível em http://www.sohistoria.com.br/ef2/centralizacaopoder/p2.php Acessado em 28/05/2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário