sexta-feira, 28 de junho de 2013

Público versus Mercantil

A temática que norteia a presente discussão é o fenômeno da “publicização do privado”. Esclarecendo-o, Viana (1976, p. 9), ensina que “O tema da ‘publicização’ da ordem privada [é] um fenômeno que acompanha o neoliberalismo contemporâneo, embora de magnitude variável, dependendo da força hegemônica do capital industrial numa sociedade dada (...)”. E Bobbio, (1987, p. 26), nos ensina que a publicização do privado consiste no “processo de intervenção dos poderes públicos na regulação da economia [e, ainda, na] intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais”. O que também é visto por ele como consequência do primado do público sobre o privado.

É interessante a análise que Sader (2003) faz da estratégia usada pelo neoliberalismo para se beneficiar dessa relação. Ele observa que o neoliberalismo instaurou debates em torno da oposição entre o estatal e o privado. Assim fazendo, tem conseguido enfraquecer o primeiro e fortalecer o segundo. Sader (2003) observa também, que a intenção por trás desses debates foi a de desviar o foco da verdadeira tensão criada pelas políticas neoliberais: público versus mercantil.  Por essa razão, ele ressalta que estatal e privado não são necessariamente contraditórios. Nessa mesma linha de raciocínio, Viana (1976, p. 15) nos informa que “o público não passa de reflexo do privado”, e que “a dissociação entre ambos decorre de uma articulação específica ao liberalismo.” Se é assim, por que o privado está subordinado ao público?

Parece que nos deparamos com uma contradição: se um dos postulados do liberalismo é a desregulamentação da economia e o máximo de mercado livre, por que a publicização da ordem privada — que é consequência do primado do público sobre o privado —, se constitui um fenômeno que acompanha o neoliberalismo? Essa contradição pode ser, interpretada, na verdade, como uma estratégia muito sutil. A conjuntura nos faz acreditar que, na verdade, uma nova abordagem do liberalismo está sendo articulada. Pois deve ter concluído que a ausência completa do Estado pode não ser tão vantajosa, uma prova é a crise econômica mundial desencadeada em 1929, com a quebra da bolsa de valores de Nova York. O melhor seria usar o Estado para atingir seus fins: uma espécie de simbiose em que o privado sai com vantagens sobre o público.

Assim, o neoliberalismo é levado a juntar novamente o que fora separado pelo liberalismo. Como nos esclarece Viana (1976, p. 20, itálico do autor, grifo nosso):

A chamada ‘publicização’ da ordem privada, buscando ajustar fatores e se comportando substitutivamente em relação ao automatismo do antigo mercado liberal, suprindo-o pela ação inteligente do Estado, sem resolver as contradições existentes na sociedade civil, transfere seu campo de incidência para a dimensão pública, política, estatal. Disso decorre que o público, sob o neoliberalismo, nem consiste no puro reflexo do privado, e nem num sistema normativo singular e emancipado do privado, mas na transfiguração deste naquele. O privado, para se manter enquanto tal, precisa exercer funções de interesse público. Dissociados pelo liberalismo clássico, público e privado encontram-se de certa forma reunidos novamente sob o neoliberalismo. Apesar do indivíduo e a propriedade livres se constituírem na base de toda a articulação do social, a defesa dos seus interesses transitará pela mediação do público. A propriedade, de um direito natural a todo e qualquer indivíduo, agora necessita ser ungida de uma função supra-individual, social.


No entanto, é importante ressaltar outro fator determinante da reaproximação entre público e privado.Viana (1976, p. 23) nos esclarece que “[...] a pressão organizada da classe operária, ao contestar a forma mercantil, impõe a ‘publicização’ do privado, provocando a intervenção do Estado sobre as condições de compra e venda da força de trabalho.” Dessa pressão emerge a conquista do Direito do Trabalho pela classe trabalhadora, “contra o pacto original do liberalismo, impondo limites legais”. (VIANA,1976, p. 23).

Essa ideia é reforçada ainda pelo fato de que:

 [...] uma vez que a propriedade está distribuída desigualmente entre homens que se rivalizam para sua obtenção, reclamam a intervenção de meios coercitivos e institucionais para se imporem sobre a sociedade civil. Exatamente nesse sentido é que a ordem privada tende a se ‘publicizar’, eis que deve ser encaminhada para a realização do ‘bem público’, ao invés de apenas fundar as conveniências e os interesses dos indivíduos. (VIANA, 1976, p. 9, grifo nosso). 

Como consequência, “O ‘público’ se constitui, então, no lugar de apaziguamento das tensões emergentes da esfera privada e, em  nome dessa função, questiona, restringe ou mesmo suprime certos interesses privados, que possam importar na exasperação dos antagonismos sociais.”

Esse processo é descrito por Viana (1976, p. 19) da seguinte forma:
  
O processo de ‘publicização’ do privado, através da intervenção estatal no mercado de trabalho e na condução da economia, rejeita a concepção do público como direito reflexo nas sociedades contemporâneas. Apagam-se as distâncias típicas do liberalismo clássico, o privado ele próprio se torna público. Política e economia confluem, e o Estado de ‘necessidade externa’, de ‘poder superior’, converte-se em mais um agente no mercado.

A efetivação dessa intervenção do público sobre o privado é explicada também por Viana (1976, p. 19) como sendo feita em múltiplos aspectos, a saber:

O mercado, o trabalho e a empresa, antes domínios estranhos à regulamentação jurídica, são penetrados por larga e copiosa legislação. O trabalho se acha ordenado por um direito próprio, a empresa sujeita à lei, como no caso das sociedades anônimas, a concorrência, pedra de toque do mercado liberal, disciplinada por disposições antitrustes e pela regulamentação administrativa estatal.
  
Dentre as vantagens advindas essa nova relação para a esfera privada estão, em muitos casos, a injeção de capital público em instituições financeiras privadas, a compra de empresas públicas por valores muito aquém dos investimentos feitos pelo Estado, com o dinheiro público, ao longo da existência dessas empresas, bem como o benefício da legitimação que a legislação proporciona.

Em Viana (1976, p. 23 - 24) é possível apontar outra vantagem que a esfera privada aufere a partir dessa nova relação com a esfera pública. De acordo com ele, a aparente primazia do direito público, produz “a ilusão de que a ordem privada advém de uma criação estatal. Inverte-se o problema: agora quem é vista como reflexa é a ordem privada. Toma-se o público como a instância fundante, na tentativa de fazer o Estado assimilar – para reorientar – os processos que produzem a contradição na sociedade civil.”

A política neoliberal como fator de enfraquecimento do Estado e mercantilização de direitos

A política do welfare state, em sua essência, visa à garantia, por meio do Estado, dos direitos sociais básicos do cidadão, a exemplo da educação e da saúde. No entanto, também visa à consolidação da cidadania. Esta, por sua vez, demanda mais duas categorias de direito: direitos políticos, como o direito de votar e de ser votado; e direitos civis, a exemplo do direito à liberdade de expressão, e o direito de ir e vir, sem ser molestado, portanto de segurança.

Muito embora esteja o welfare state associado a direitos sociais, é possível advogar que a consolidação de um Estado de bem-estar demanda uma cidadania plena. E para que esta seja alcançada, essas três categorias de direitos devem estar amplamente atendidas. É difícil imaginar um Estado de “bem-estar” e um sentido de cidadania, mesmo com educação e saúde de altíssimos níveis, enquanto são retirados direitos políticos e civis. Muito embora, seja justamente essa a estratégia recorrente nos regimes autoritários e totalitários: adotar políticas de welfare state para encobrir a violação desses direitos.

No entanto, como os direitos sociais são, metaforicamente falando, mais palpáveis, adéquam-se mais facilmente à qualidade de mercadoria. Não é surpresa, portanto, que um dos alvos da ação do neoliberalismo seja exatamente a mercantilização desses direitos. Como na mitologia grega o ambicioso rei Midas desejou transformar em ouro tudo em que tocasse, no capitalismo contemporâneo, a lógica neoliberal transforma em mercadoria tudo em que “toca”. E nessa esteira de transformação, os direitos sociais são paulatinamente usurpados do Estado, e arrastados para o circuito do mercado. São mercantilizados.

O mercado, assim, impõe sua primazia. Apropriando-se dos espaços que deveriam estar sendo ocupados, de forma competente, pelo Estado. É fortalecido, enquanto o Estado é enfraquecido, dilapidado pelo discurso e ação neoliberais, que proclama sua incompetência para garantir os direitos sociais, estratégia que reforça o descrédito da sociedade com relação ao estatal. O Estado é apontado como ineficiente, pois apesar de impor uma carga tributária altíssima em forma de impostos, não os reverte em bons serviços à população; é criticado por sua burocracia, sua corrupção e sua opressão — como observa Emir Sader. Restando-lhe a função de mero regulador dos interesses mercantilistas.

Como já foi dito, a separação entre privado e público é uma invenção liberal. Separação que criou um mundo em que a mercantilização dos bens sociais é irrestrita. (VIANA , 1976). Uma das consequências desastrosas desse processo, para a sociedade, tem sido o desmantelamento das instituições públicas, tanto pelo descaso generalizado dos gestores para com a “coisa pública”, quanto pelos processos de privatização dessas instituições. Até mesmo a segurança tende a migrar para o lado do mercantilismo: tem-se tornado cada vez mais mercadoria, com a proliferação das empresas privadas de segurança.

Sader apresenta algumas razões porque o Estado brasileiro tem sido facilmente desqualificável, portanto enfraquecido:

1) Tornou-se um Estado privatizado;
2) Arrecada do mundo do trabalho e transfere recursos para o setor financeiro;
3) Gasta mais com pagamento dos juros da dívida do que com educação e saúde;
4) Paga taxas de juros estratosféricas ao capital financeiro;
5) Remunera pessimamente seus professores e seus trabalhadores do setor de saúde pública, que prestam serviços  à massa da população;
6) Não assegura os direitos básicos para a grande maioria da população;
7) Dilapidou o patrimônio público em processos de privatização financiados com o próprio dinheiro público.

Atraindo os olhares da sociedade para as deficiências do Estado, o neoliberalismo consegue jogá-la contra si mesma. Pois não consegue divisar que, enquanto o Estado está sendo enfraquecido, seus próprios direitos também estão sendo solapados, e sua cidadania está perdendo espaço. Pois o neoliberalismo propõe o afrouxamento na regulação estatal, liberalização do mercado, e a privatização de instituições públicas. Um processo denominado de mercantilização de direitos.

Essa estratégia tem funcionado, pois, no imaginário popular, a oposição Estatal versus Privado, resulta na inferioridade do primeiro em relação ao segundo. Gerando uma tensão que Bobbio (1987) descreve como Termo Forte versus Termo Fraco. Essa oposição acontece quando um termo é definido de forma negativa, fortalecendo o outro — com tendência à primazia deste.

Essa tese pode ser comprovada nas escolhas que a sociedade faz entre os serviços públicos e os privados, como saúde e educação. Aqueles que têm condições jamais recorrem ao sucateado SUS, e nem imaginam colocar seus filhos em escolas públicas. Optam pela iniciativa privada e pagam muito caro por esses serviços/direitos, cuja qualidade, tão alardeada e procurada, nem sempre é encontrada. Resignados, consolam-se dizendo para si mesmos que estão fazendo um investimento.

Podendo pagar por serviços que, na verdade, são direitos sociais indissociáveis da cidadania, calam-se e não reivindicam que o Estado cumpra seu papel social, caindo na armadilha do discurso neoliberal: sem perceber, estão sendo empurrados pelo sistema — impregnado pela lógica do discurso e das articulações neoliberais —, ao circuito mercantilista.


O quadro a seguir mostra o conflito de interesses que resulta na tensão público versus mercantil
Público
Mercantil
Fundamenta-se nos cidadãos, nos indivíduos como sujeitos de direitos.
Congrega aos componentes do mercado os consumidores, os investidores.
Tem na sua essência a universalização de direitos.
Mercantiliza o acesso ao que deveriam ser direitos: educação, saúde, habitação, saneamento básico, lazer, cultura.
Identifica-se com a democracia, seja pelo compromisso com a universalização dos direitos, seja pela possibilidade de controle pela cidadania.
Retira da cidadania a capacidade de controle sobre as esferas da sociedade que privatiza, mercantiliza.
Fonte: adaptado de (Sader, 2003).

                                                                                                                       
Reflexões para a mudança desse cenário

Diante do exposto, é coerente fazer coro com a proposta de Sader (2003), que advoga a superação do neoliberalismo através da construção de uma democracia social, quando propõe uma “refundação do Estado em torno da esfera pública”.

E ainda, “Superar o privado implica em que tomemos o público como função social e não como conjunto de normas. Numa sociedade possessiva de mercado, a propriedade não se legitima socialmente por exercer funções sociais e sim como um direito.” (VIANA, 1976, p. 18, com base em Pasukanis[1]).

Por fim, Viana (1976, p. 19, grifo nosso) com base em Cerroni[2] ( 1972) declara que “[...] o neoliberalismo se caracteriza por uma crescente ‘mercantilização’ da ordem pública. A predominância do capitalismo monopolista e mais os movimentos democráticos que lutam pela igualitarização da vida social e pela participação irrestrita na condução dos negócios públicos constituem-se, no essencial, nos elementos que intervêm para realterar a posição relativa dos termos do binômio público versus privado”.


Referências

BOBBIO, Noberto. A grande dicotomia: público/privado. In: BOBBIO, Noberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

SADER, Emir. Público versus Mercantil. Folha de São Paulo, 2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1906200310.htm Acessado em: 20 de junho de 2013.

VIANNA, Luís Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.


[1] PASUKANIS, E. A teoria geral do Direito e o marxismo. Ed. Perspectiva Jurídica, Coimbra, 1972.
[2] CERRONI, U. La Libertad de los modernos. Ed. Martinez Roca, Barcelona, 1972.

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