BOBBIO, Noberto. A grande dicotomia: público/privado.
In: BOBBIO, Noberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da
política. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
O autor inicia a
discussão sobre a dicotomia público/privado dando algumas características desse
binômio, que lhe confere o título de dicotomia. Segundo ele, esses termos:
a) dividem um universo em duas esferas; b) estabelecem uma divisão que é ao
mesmo tempo total; c) dão origem a outras dicotomias secundarias. Ex.: Direito Público versus Direito Privado; d)
podem ser definidos independentemente, ou um deles é definido acarretando
conotação negativa ao outro, donde emerge a tensão entre Termo Forte versus
Termo Fraco; por essa razão, quando se aumenta a esfera do público, diminui-se
a do privado, e vice-versa; e) condicionam-se reciprocamente, no sentido de que
se reclamam continuamente um ao outro. Ex.: Interesse Público remete à
contraposição ao Interesse Privado; f) eles “se delimitam reciprocamente,
no sentido de que a esfera do público chega até onde começa a esfera do privado
e vice-versa”. (p. 14, § 2). Originariamente a diferenciação entre o direito
público e o privado atribui supremacia do direito público sobre o privado (p.
15).
Outras dicotomias
emergem desse contexto, a saber:
a) Sociedade de iguais versus Sociedade de desiguais - a exemplo da
relação de subordinação: governantes versus governados, e detentores do poder
de comando versus destinatários do dever de obediência. Nesse ponto, Bobbio
ressalta que o direito é um ordenamento de relações sociais entre iguais e entre
desiguais, quando a sociedade natural ou a sociedade de mercado são associadas à
esfera privada em contraposição à pública. Quando se trata das relações
entre estados (nações), temos exemplos de relações entre iguais.
Quando se trata da
esfera das relações econômicas, tem-se relações substancialmente de desiguais por
conta da divisão do trabalho; porém, são relações formalmente iguais no
mercado.
Quadro 1 – Contraste entre as características
das esferas pública e privada.
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Esfera Pública
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Esfera Privada
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Sociedade
Política
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Sociedade
Econômica
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Relações entre
desiguais
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Relações entre
iguais
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Atende ao
interesse público
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Cuida dos
próprios interesses privados
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Em
concorrência - Em Colaboração
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Com outros
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Adaptado de Bobbio (1987, p. 17, § 2)
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b) Lei e Contrato – são fontes do direito público e do
direito privado, respectivamente, no sentido técnico-jurídico do termo. No
primeiro caso, o direito público é
estabelecido pela autoridade política
por meio da lei, reforçada pelo poder de
coerção que o Estado detém; e ainda: “[...] é a forma com a qual são reguladas
as relações dos súditos entre si, e entre o Estado e os súditos, na sociedade
civil”. (p. 18 § 1); no segundo, o direito privado é estabelecido por meio de
normas que regulam as relações recíprocas entre particulares, com base no
princípio da reciprocidade, “independentemente da regulamentação pública” (p.
18). O contrato é um exemplo bem prático de instrumento que regula essa relação,
sobretudo no contexto em que não existe um poder público.
Quadro 2 – Contraste entre as características do direito
privado e do direito público
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Direito Privado
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Direito público
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Direito do estado de natureza – principais institutos: a
propriedade e o contrato.
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Direito que emana do Estado: supressão do estado de
natureza – sua “força vinculatória deriva da possibilidade de que seja
exercido em sua defesa o poder coativo pertencente de maneira exclusiva ao
soberano.
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Direito Natural
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Direito Positivo
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Justiça Comutativa (equatrix):
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Justiça distributiva:
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- “Tem lugar entre
as partes”.
- Preside às
trocas.
- Princípio: para haver justiça, em uma troca as coisas
trocadas devem ser de igual valor.
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- “Tem lugar entre
o todo e as partes”.
- Critérios mais comuns: “a cada um segundo o mérito”, “a
cada um segundo a necessidade”, “a cada um segundo o trabalho”.
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Sociedade de iguais (rectrix)
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Sociedade de desiguais
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(cidadãos - cidadãos)
“A justiça comutativa regula as sociedades de iguais”.
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(cidadãos - Estado)
“A justiça distributiva regula as sociedades de desiguais.
Ex. Família - Estado.
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Adaptado de Bobbio (1987, p. 20)
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A doutrina que
funda o Estado sobre o contrato social é criticada (sobretudo por Hegel),
considera-o um fundamento frágil, e que carece de legitimidade (por se tratar
de um instituto de direito privado), e isto é justificado por duas razões: a) “o
vínculo que une o Estado aos cidadãos é permanente e irrevogável, enquanto o
vínculo contratual é revogável pelas partes”; b) “o Estado pode pretender de
seus cidadãos, embora em circunstâncias excepcionais, o sacrifício do bem
maior, a vida, que é um bem contratualmente indisponível”. (p. 19).
A dicotomia público
versus privado está revestida de significado valorativo. Bobbio explica essa
relação valorativa da seguinte forma: “[...] um ente não pode ser
simultaneamente público e privado, e sequer nem público nem privado.” (p. 20), Donde
concluímos que deve ser, necessariamente, uma coisa ou outra.
Seus significados
têm valores opostos: “quando é atribuído um significado valorativo positivo ao
primeiro, o segundo adquire um significado valorativo negativo, e vice-versa”.
(p. 20). Isto é uma realidade bem atual no Brasil, em que tudo o que é público
tem adquirido o status negativo de ruim, sobretudo nos campos da educação, da
saúde e da segurança pública, dentre outros serviços oferecidos pelo Estado.
Dessa oposição
emerge duas situações: o primado do poder público sobre o privado e do privado
sobre o público.
O primado do
privado tem suas raízes na história, pela adoção do direito romano no ocidente.
(p. 21). Considerado como direito da
razão, ou como refletindo e descrevendo relações naturais. Foi “durante séculos
[..] o direito por excelência”. (p. 21).
Priorizado até nos estudos filosóficos, como em Hegel, considerado “direito
abstrato” dos Princípios de Filosofia do Direito; em Marx, onde a crítica ao
direito privado recai com maior força sobre o instituto do contrato. Considera-o
“direito burguês”.
Já “A crítica do
direito público se apresenta como crítica não tanto de uma forma de direito,
mas da concepção tradicional do Estado e do poder político” (p. 22).
O direito público
como corpo sistemático de normas nasce muito tarde em relação ao direito
privado. Ou seja, na época da formação do Estado moderno. (p. 22). Isto porque,
com o Estado moderno, passaram a ser estabelecidas relações e problemas
diversos que o direito romano não dava conta, a exemplo das relações entre
Estado e Igreja, entre impérios e reinos, entre reinos e cidades.
A razão principal
da persistência do primado do direito privado sobre o direito público é a
proteção do direito de propriedade contra arbitrariedades do Estado, a exemplo
da expropriação por motivos de “utilidade pública”. (p. 23).
A noção do direito
privado é a de que “os súditos são livres para fazer tudo aquilo que o soberano
não proibiu [a exemplo da] liberdade de comprar, de vender e de fazer outros
contratos um com o outro”. (p. 23).
Reforçando essa
concepção, a propriedade é considerada por Locke como um “direito natural, pois
nasce do esforço pessoal no estado de natureza antes da constituição do poder
político, e como tal deve ter o seu livre exercício garantido pela lei do
Estado (que é a lei do povo) [em tese]”.
De Locke, temos
então, a concepção de “Inviolabilidade da propriedade, que compreende todos os
outros direitos individuais naturais, como a liberdade e a vida, e indica a
existência de uma esfera do indivíduo singular autônomo com respeito à esfera
sobre a qual se estende o poder público, torna-se um dos eixos da concepção
liberal do Estado, que nesse contexto pode então ser redefinida como a mais
consciente, coerente e historicamente relevante teoria do primado do privado
sobre o público” (p. 23 - 24).
Do outro lado
tem-se o primado do público, que é uma reação à concepção liberal de Estado mínimo.
Funda-se “sobre a contraposição do interesse coletivo ao individual e sobre a necessária
subordinação, até à eventual supressão, do segundo ao primeiro”. (p. 24). O
princípio que fundamenta essa postura é “O todo vem antes das partes”. (p. 24).
E ainda: “A totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros
singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado transforma-se
no bem das suas partes [...]”, conceito aristotélico apropriado por Hegel.
Bobbio ensina que o
primado do público sobre o privado consiste na “Intervenção estatal na
regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais”.
(p. 25). É um processo de reapropriação sistemática do espaço conquistado pela
sociedade burguesa. Essa regulação é observada pelo autor como “O caminho
inverso ao da emancipação dessa sociedade em relação ao Estado”, que a
originou, a fez crescer e se tornar hegemônica. (idem).
A principal
característica do primado do público sobre o privado é o “Processo de
intervenção dos poderes públicos na regulação da economia”. (p. 26), ao que
Bobbio denomina de processo de “publicização do privado. Processo apreciado
pelas doutrinas socialistas, porém depreciado pelos liberais — que advogam o Estado
mínimo —, e por socialistas libertários.
Esse primado da
esfera pública no Estado moderno, no entanto, não é pacífico. A reação da
sociedade civil se faz sentir por meio de “Grupos organizados cada vez mais
fortes [gerando] conflitos grupais que se renovam continuamente, diante dos
quais, o Estado, como conjunto de organismos
de decisão (parlamento e governo) e de execução (o aparato burocrático),
desenvolve a função de mediador e de garantidor mais do que a de detentor do
poder de império segundo a representação clássica da soberania”. (p. 26).
Essa conjuntura é
vista como uma ameaça ao Estado, onde “O direito privado toma a dianteira sobre
o direito público e esta prevaricação da esfera inferior sobre a superior
revelaria um processo em curso de degeneração do Estado”. (p. 27)
Por fim, a dicotomia público versus privado entendida
como público versus secreto
O autor adverte
quanto ao entendimento de que o termo público seja antônimo de secreto,
pois a acepção de público aqui não é necessariamente
a de “controle do poder político por parte do público”. (p. 28). E ainda: “O
poder político é o poder público no sentido da grande dicotomia mesmo quando
não é público, não age em público, esconde-se do público, não é controlado pelo
público”. (p. 28).
Por outro lado,
Kant defendia que “Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja
máxima não é conciliável com a publicidade são injustas”. (KANT, 1896, apud
BOBBIO, 1987. p, 28). Isto porque, em regimes monárquicos de direito divino, e
nas várias formas de despotismo “A invisibilidade e, portanto, a
incontrolabilidade do poder eram asseguradas, institucionalmente, pelo lugar
não aberto ao público em que se tomavam as decisões políticas (o gabinete
secreto) e pela não publicidade das mesmas decisões.” (p. 29).
Em contexto
democrático exige-se que o poder seja visível. Donde a necessidade de
observância do princípio da “Publicidade das ações de quem detém um poder
público”. (p. 28). O autor alerta, ainda, para o fato de que, quem detém o
poder tende a usar manobras para que seus atos não sejam publicizados. No
entanto, há a possibilidade de “O segredo de Estado [ser] legitimado apenas nos
casos excepcionais previstos pela lei.” (p. 31).
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