segunda-feira, 17 de junho de 2013

A grande dicotomia: público versus privado


BOBBIO, Noberto. A grande dicotomia: público/privado. In: BOBBIO, Noberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

O autor inicia a discussão sobre a dicotomia público/privado dando algumas características desse binômio, que lhe confere o título de dicotomia. Segundo ele, esses termos: a) dividem um universo em duas esferas; b) estabelecem uma divisão que é ao mesmo tempo total; c) dão origem a outras dicotomias secundarias. Ex.:  Direito Público versus Direito Privado; d) podem ser definidos independentemente, ou um deles é definido acarretando conotação negativa ao outro, donde emerge a tensão entre Termo Forte versus Termo Fraco; por essa razão, quando se aumenta a esfera do público, diminui-se a do privado, e vice-versa; e) condicionam-se reciprocamente, no sentido de que se reclamam continuamente um ao outro. Ex.: Interesse Público remete à contraposição ao Interesse Privado; f) eles “se delimitam reciprocamente, no sentido de que a esfera do público chega até onde começa a esfera do privado e vice-versa”. (p. 14, § 2). Originariamente a diferenciação entre o direito público e o privado atribui supremacia do direito público sobre o privado (p. 15).

Outras dicotomias emergem desse contexto, a saber:

a) Sociedade de iguais versus Sociedade de desiguais - a exemplo da relação de subordinação: governantes versus governados, e detentores do poder de comando versus destinatários do dever de obediência. Nesse ponto, Bobbio ressalta que o direito é um ordenamento de relações sociais entre iguais e entre desiguais, quando a sociedade natural ou a sociedade de mercado são associadas à esfera privada em contraposição à pública. Quando se trata das relações entre estados (nações), temos exemplos de relações entre iguais.

Quando se trata da esfera das relações econômicas, tem-se relações substancialmente de desiguais por conta da divisão do trabalho; porém, são relações formalmente iguais no mercado.
  
Quadro 1 – Contraste entre as características das esferas pública e privada.

Esfera Pública
Esfera Privada
Sociedade Política
Sociedade Econômica
Relações entre desiguais
Relações entre iguais
Atende ao interesse público
Cuida dos próprios interesses privados

Em concorrência     -    Em Colaboração
Com outros
Adaptado de Bobbio (1987, p. 17, § 2)

b) Lei e Contrato – são fontes do direito público e do direito privado, respectivamente, no sentido técnico-jurídico do termo. No primeiro caso, o direito público é estabelecido pela autoridade política por meio da lei, reforçada  pelo poder de coerção que o Estado detém; e ainda: “[...] é a forma com a qual são reguladas as relações dos súditos entre si, e entre o Estado e os súditos, na sociedade civil”. (p. 18 § 1); no segundo, o direito privado é estabelecido por meio de normas que regulam as relações recíprocas entre particulares, com base no princípio da reciprocidade, “independentemente da regulamentação pública” (p. 18). O contrato é um exemplo bem prático de instrumento que regula essa relação, sobretudo no contexto em que não existe um poder público.

Quadro 2 – Contraste entre as características do direito privado e do direito público


Direito Privado

Direito público

Direito do estado de natureza – principais institutos: a propriedade e o contrato.
Direito que emana do Estado: supressão do estado de natureza – sua “força vinculatória deriva da possibilidade de que seja exercido em sua defesa o poder coativo pertencente de maneira exclusiva ao soberano.
Direito Natural
Direito Positivo
Justiça Comutativa (equatrix):

Justiça distributiva:

- “Tem lugar entre as partes”.
-  Preside às trocas.
- Princípio: para haver justiça, em uma troca as coisas trocadas devem ser de igual valor.
- “Tem lugar entre o todo e as partes”.
- Critérios mais comuns: “a cada um segundo o mérito”, “a cada um segundo a necessidade”, “a cada um segundo o trabalho”.

Sociedade de iguais (rectrix)

Sociedade de desiguais

(cidadãos - cidadãos)
“A justiça comutativa regula as sociedades de iguais”.
(cidadãos - Estado)
“A justiça distributiva regula as sociedades de desiguais. Ex. Família - Estado.
Adaptado de Bobbio (1987, p. 20)

A doutrina que funda o Estado sobre o contrato social é criticada (sobretudo por Hegel), considera-o um fundamento frágil, e que carece de legitimidade (por se tratar de um instituto de direito privado), e isto é justificado por duas razões: a) “o vínculo que une o Estado aos cidadãos é permanente e irrevogável, enquanto o vínculo contratual é revogável pelas partes”; b) “o Estado pode pretender de seus cidadãos, embora em circunstâncias excepcionais, o sacrifício do bem maior, a vida, que é um bem contratualmente indisponível”. (p. 19).

A dicotomia público versus privado está revestida de significado valorativo. Bobbio explica essa relação valorativa da seguinte forma: “[...] um ente não pode ser simultaneamente público e privado, e sequer nem público nem privado.” (p. 20), Donde concluímos que deve ser, necessariamente, uma coisa ou outra.

Seus significados têm valores opostos: “quando é atribuído um significado valorativo positivo ao primeiro, o segundo adquire um significado valorativo negativo, e vice-versa”. (p. 20). Isto é uma realidade bem atual no Brasil, em que tudo o que é público tem adquirido o status negativo de ruim, sobretudo nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, dentre outros serviços oferecidos pelo Estado.

Dessa oposição emerge duas situações: o primado do poder público sobre o privado e do privado sobre o público.

O primado do privado tem suas raízes na história, pela adoção do direito romano no ocidente. (p. 21).  Considerado como direito da razão, ou como refletindo e descrevendo relações naturais. Foi “durante séculos [..] o direito por excelência”.  (p. 21). Priorizado até nos estudos filosóficos, como em Hegel, considerado “direito abstrato” dos Princípios de Filosofia do Direito; em Marx, onde a crítica ao direito privado recai com maior força sobre o instituto do contrato. Considera-o “direito burguês”.

Já “A crítica do direito público se apresenta como crítica não tanto de uma forma de direito, mas da concepção tradicional do Estado e do poder político” (p. 22).

O direito público como corpo sistemático de normas nasce muito tarde em relação ao direito privado. Ou seja, na época da formação do Estado moderno. (p. 22). Isto porque, com o Estado moderno, passaram a ser estabelecidas relações e problemas diversos que o direito romano não dava conta, a exemplo das relações entre Estado e Igreja, entre impérios e reinos, entre reinos e cidades.

A razão principal da persistência do primado do direito privado sobre o direito público é a proteção do direito de propriedade contra arbitrariedades do Estado, a exemplo da expropriação por motivos de “utilidade pública”. (p. 23).

A noção do direito privado é a de que “os súditos são livres para fazer tudo aquilo que o soberano não proibiu [a exemplo da] liberdade de comprar, de vender e de fazer outros contratos um com o outro”. (p. 23).

Reforçando essa concepção, a propriedade é considerada por Locke como um “direito natural, pois nasce do esforço pessoal no estado de natureza antes da constituição do poder político, e como tal deve ter o seu livre exercício garantido pela lei do Estado (que é a lei do povo) [em tese]”.

De Locke, temos então, a concepção de “Inviolabilidade da propriedade, que compreende todos os outros direitos individuais naturais, como a liberdade e a vida, e indica a existência de uma esfera do indivíduo singular autônomo com respeito à esfera sobre a qual se estende o poder público, torna-se um dos eixos da concepção liberal do Estado, que nesse contexto pode então ser redefinida como a mais consciente, coerente e historicamente relevante teoria do primado do privado sobre o público” (p. 23 - 24).

Do outro lado tem-se o primado do público, que é uma reação à concepção liberal de Estado mínimo. Funda-se “sobre a contraposição do interesse coletivo ao individual e sobre a necessária subordinação, até à eventual supressão, do segundo ao primeiro”. (p. 24). O princípio que fundamenta essa postura é “O todo vem antes das partes”. (p. 24). E ainda: “A totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado transforma-se no bem das suas partes [...]”, conceito aristotélico apropriado por Hegel.

Bobbio ensina que o primado do público sobre o privado consiste na “Intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais”. (p. 25). É um processo de reapropriação sistemática do espaço conquistado pela sociedade burguesa. Essa regulação é observada pelo autor como “O caminho inverso ao da emancipação dessa sociedade em relação ao Estado”, que a originou, a fez crescer e se tornar hegemônica. (idem).

A principal característica do primado do público sobre o privado é o “Processo de intervenção dos poderes públicos na regulação da economia”. (p. 26), ao que Bobbio denomina de processo de “publicização do privado. Processo apreciado pelas doutrinas socialistas, porém depreciado pelos liberais — que advogam o Estado mínimo —, e por socialistas libertários.

Esse primado da esfera pública no Estado moderno, no entanto, não é pacífico. A reação da sociedade civil se faz sentir por meio de “Grupos organizados cada vez mais fortes [gerando] conflitos grupais que se renovam continuamente, diante dos quais, o Estado, como conjunto de organismos  de decisão (parlamento e governo) e de execução (o aparato burocrático), desenvolve a função de mediador e de garantidor mais do que a de detentor do poder de império segundo a representação clássica da soberania”. (p. 26).

Essa conjuntura é vista como uma ameaça ao Estado, onde “O direito privado toma a dianteira sobre o direito público e esta prevaricação da esfera inferior sobre a superior revelaria um processo em curso de degeneração do Estado”. (p. 27)

Por fim, a dicotomia público versus privado entendida como  público versus secreto

O autor adverte quanto ao entendimento de que o termo público seja antônimo de secreto, pois  a acepção de público aqui não é necessariamente a de “controle do poder político por parte do público”. (p. 28). E ainda: “O poder político é o poder público no sentido da grande dicotomia mesmo quando não é público, não age em público, esconde-se do público, não é controlado pelo público”. (p. 28).

Por outro lado, Kant defendia que “Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não é conciliável com a publicidade são injustas”. (KANT, 1896, apud BOBBIO, 1987. p, 28). Isto porque, em regimes monárquicos de direito divino, e nas várias formas de despotismo “A invisibilidade e, portanto, a incontrolabilidade do poder eram asseguradas, institucionalmente, pelo lugar não aberto ao público em que se tomavam as decisões políticas (o gabinete secreto) e pela não publicidade das mesmas decisões.” (p. 29).

Em contexto democrático exige-se que o poder seja visível. Donde a necessidade de observância do princípio da “Publicidade das ações de quem detém um poder público”. (p. 28). O autor alerta, ainda, para o fato de que, quem detém o poder tende a usar manobras para que seus atos não sejam publicizados. No entanto, há a possibilidade de “O segredo de Estado [ser] legitimado apenas nos casos excepcionais previstos pela lei.” (p. 31).


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