quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A Pedagogia da autogestão: aplicabilidade no contexto de formação de policiais militares.

Nesta breve reflexão, com apoio nos princípios e conceitos apresentados por Nascimento (s/a) e Gallo (1999), pretende-se responder aos seguintes questionamentos: É possível a aplicação de princípios da Pedagogia da autogestão no contexto da formação de policiais militares? Sendo positiva a resposta, em que medida?

Observa-se da leitura dos dois textos tomados como base teórica para essa discussão, que há duas perspectivas da aplicação da autogestão: a primeira discute a questão da autogestão no ambiente de trabalho, e a segunda no ambiente escolar, mais precisamente no contexto de sala de aula. Essas duas perspectivas enriquecem a discussão sobre a aplicação da Pedagogia da autogestão no contexto de formação de policiais militares porque esse ambiente é, ao mesmo tempo, de trabalho e de formação. 

1 CONCEITOS

De Lapassade (1971 apud GALLO, 1999, p. 61) temos que a pedagogia da autogestão é um  instrumento técnico da Pedagogia Institucional. 

Lapassade (1971, apud GALLO, 1999, p. 67, grifo nosso) ensina, ainda, que “A autogestão pedagógica contesta o sistema atual de instituições sociais na medida em que ela consiste na construção de contra-instituições. Essas contra-instituições funcionam como analisadores que fazem aparecer os elementos ocultos do sistema”. 

2 PRINCÍPIOS

Dado o escopo desta reflexão, serão abordados apenas quatro princípios da pedagogia da autogestão, a saber: 1) Aprendizagem baseada na prática, na experimentação; 2) Oposição ao autoritarismo; 3) A autonomia; e 4) A mediação do educador.

2.1 APRENDIZAGEM BASEADA NA PRÁTICA, NA EXPERIMENTAÇÃO

Nascimento (p. 6) explica esse princípio da seguinte forma: “As aprendizagens são baseadas essencialmente sobre práticas que põem os operários [os profissionais de modo geral, e os educandos] em situações concretas e que lhes incitam a buscar respostas a estas situações”. 

Como se vê, esse tipo de aprendizagem é baseada na experiência, na experimentação, nas tentativas e erros, levando-se em conta os saberes adquiridos ao longo da vida pelos atores envolvidos no processo. Isto significa que as experiências de vida são valorizadas. Nesse sentido, Mothé (1980 apud CANGUILHEM, 2006, apud NASCIMENTO, p. 6), ensina que “A vida é experiência, o que significa improvisação, utilização das ocorrências: ela é tentativa em todos os sentidos.” E, ainda, “O campo educativo e escolar foi sempre um terreno de experimentação, de inovação, de contestação; é um dos campos principais em que a experimentação para autogestão deve se exercer”. (NASCIMENTO, p. 6).

Por fim, “a experimentação deve ser considerada como um procedimento próprio à dinâmica da autogestão” (Nascimento, p. 1)

2.2 OPOSIÇÃO AO AUTORITARISMO 

Conforme Nascimento (p. 3) a autogestão é “[...] uma etapa importante de um novo tipo de sociedade democrática[...]”. Uma das implicações dessa característica da autogestão é a participação. Quanto a isto Nascimento (p. 6) observa que “‘a autogestão depende de que os trabalhadores estejam em organizações as mais participativas’”. O autor resgata a proposta de autogestão em contexto socialista realizada com trabalhadores para fazer uma ponte dessa experiência no campo da educação.

No contexto capitalista, no entanto, há a exploração do trabalhador, e quanto menos a par do processo esse estiver, quanto menos consciente, e quanto mais dependente, melhor para o sistema, essa lógica, como sabemos, reflete-se no campo da educação. A proposta da autogestão está embebida da ideia de autonomia dos atores sociais envolvidos. 

Transportada para o campo da educação a proposta se identifica com os ideais de autonomia do educando das teorias pedagógicas modernas, que passa a autogerir a construção do seu próprio conhecimento. Saindo do nível meramente teórico, aventura-se no nível da prática, pois a prática, segundo essa proposta, é o caminho mais eficaz para o aprendizado. Aquilo que “se vive” tem efeito muito mais contundente no aprendizado.

Essa oposição é explicitada na seguinte declaração de Gallo (1999, p. 3, grifo nosso) “[...] a aplicação da análise institucional à pedagogia constitui-se numa crítica ao autoritarismo da relação pedagógica tradicional. O desenvolvimento dessa reflexão psicossociológica no âmbito da instituição pedagógica  provoca o surgimento daquela que ficou conhecida como ‘pedagogia institucional’, tendo por base a crítica à relação de poder na escola e a prática da autogestão na sala de aula.”

Segundo Lobrot (Apud GALLO, 1999, p.7, grifo nosso) “A autogestão pedagógica inaugura uma relação pedagógica que promove a abolição da relação sujeito-objeto, onde o assumir-se sujeito de um indivíduo ou grupo implica na sujeição de outros. A relação pedagógica através da autogestão é uma relação de intersubjetividade, uma ação entre sujeitos, que implica no mútuo reconhecimento e respeito. Tal relação promove, pelo menos em nível interno e imediato, a abolição de todo e qualquer poder.” 

No entanto, essa concepção de “abolição de todo e qualquer poder” é criticada por Gallo (1999, p. 68), que a considera “ingênua”, apresentando-a como uma das limitações da pedagogia da autogestão. A crítica de Gallo é contundente ao dizer que:

[...] o grupo autogestionário parece relacionar-se alheiamente à questão do poder, enquanto as liberdades individuais não entram em conflito; quando, por qualquer razão, instaura-se um conflito de desejos, em que a liberdade de um interfere na liberdade de outro, ou a liberdade de um interfere na liberdade do grupo, ou, ainda, a liberdade do grupo interfere na liberdade de um, a questão do poder reaparece, e a resolução do conflito demarca a final da ilusão de ‘autogestão’, pois o conflito é resolvido autoritariamente, com o desejo de um impondo-se sobre o grupo, ou o conflito é resolvido ‘democraticamente’, com o desejo do grupo impondo-se sobre o indivíduo.

2.3 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA 

A pedagogia da autogestão se constitui, ela mesma, um princípio. Isto é claramente percebido a partir da forma com que Lobrot (Apud GALLO, 1999, p. 5, grifo nosso) se refere a ela: “O princípio consiste em colocar nas mãos dos alunos tudo o que é possível, quer dizer, não a elaboração dos programas, ou a decisão sobre os exames que não dependem, nem do docente nem de seus alunos, senão o conjunto da vida, as atividades e organização do trabalho no interior desse marco [...]”. Como princípio ela faz parte do que se passou a denominar de Pedagogia Institucional. 

2.4 O EDUCADOR NO PAPEL DE MEDIADOR NA EXPERIMENTAÇÃO 

Assim, defini-se o papel do educador: “O militante deve ser mais o mediador que permite aos grupos experimentar; aquele que em qualquer situação experimenta os valores da experimentação. É o mediador que ajuda, reenvia aos grupos suas próprias análises como sendo as análises e não certezas, interpretações entre outras”. (NASCIMENTO, p. 2). E, ainda, “Estes educadores e militantes têm um grande papel na valorização do saber acumulado pelos próprios trabalhadores em seus locais de trabalho.’” (NASCIMENTO, p. 2).

3 A PEDAGOGIA DA AUTOGESTÃO E O CONTEXTO DE FORMAÇÃO DO POLICIAL MILITAR

3.1 CARACTERÍSTICAS DA ORGANIZAÇÃO POLICIAL MILITAR

De acordo com Max Weber (1978, p. 21) “O exército moderno é essencialmente uma organização burocrática [...]”. Sendo as instituições policiais militares oriundas do exército brasileiro, herdam essa mesma estrutura, que se apóia em dois pilares clássicos: a disciplina e a hierarquia. Seus integrantes estão agrupados em dois seguimentos hierárquicos bem definidos: os oficiais e as praças. Essa divisão, por sua vez, comporta outras subdivisões, a saber: o círculo dos oficiais é constituído por oficiais subalternos, intermediários, e superiores; o círculo das praças está subdividido em cabos e soldados, sargentos, e, por fim, subtenentes.

A nosso ver, essa estrutura se constitui em sério obstáculo ao princípio da autogestão. Isto porque estabelece um distanciamento funcional gradativo entre os atores sociais que integram essas instituições, e, contrariamente à proposta de “abolição do poder” que faz parte do construto da pedagogia da autogestão, essa estrutura reforça a forte presença de uma relação de poder rigidamente vertical. Portanto, se a proposta da autogestão nos moldes apresentados pelos seus teóricos, encontra sérias dificuldades de ser aplicada em contexto civil, como observa Gallo (1999), muito mais dificuldades encontrará no contexto das organizações militares.

No entanto, em se tratando de polícias militares, que  possuem missão diversa da do Exército, a rigidez hierárquica pode e deve ser amenizada. Dessa forma, os princípios da autogestão, aqui apresentados, muito embora não possam ser aplicados em sua inteireza, podem receber uma roupagem que se adéqüe a esse contexto.

3.2 CARACTERÍSTICAS DA FORMAÇÃO MILITAR

A formação tradicional nas organizações militares, geralmente é caracterizada pelo autoritarismo; pelo aprendizado mecânico de técnicas, sem se estabelecer uma ponte com a experiência de vida do aprendiz; não se cogita a autonomia, pois a organização funciona através de ordens verticalmente estabelecidas; os educadores — que no contexto militar são denominados de instrutores —, atuam muitas vezes como carrascos autoritários e donos do conhecimento. Nessas condições, é impossível se pensar em mediação do processo de ensino e de aprendizagem.

Por outro lado, quando se considera o tipo de profissional de segurança pública, mesmo em moldes militares, que a atual sociedade demanda, é inadmissível esse tipo de relação instrutor/aluno. Dessa forma, na experiência da Polícia Militar da Paraíba, cada vez mais esse tipo de ambiente de formação e de convívio profissional tem sido substituído por uma formação mais humana. 

Nessas condições, a autoridade não deve residir simplesmente na superioridade hierárquica, mas conquistada pelo conhecimento e pelo tratamento humano, isto não significa que não exista mais o autoritarismo na instituição, mas é fato que essa postura cada vez mais perde espaço. Tem-se procurado tornar as salas de aula em ambientes de construção de conhecimentos, em que, mesmo cientes das diferenças hierárquicas, os subordinados têm espaço para indagar e sugerir.

Quanto ao princípio da autonomia, pode-se dizer que se tem buscado uma autonomia relativa, pois espera-se que o policial que estará lidando com um número variado de ocorrências, seja capaz de fazer seu próprio juízo de valor, com base nos conhecimentos adquiridos na formação, de tal forma a conduzir a ocorrência sem depender da intervenção de superiores. Para isto, a mentalidade do instrutor carrasco (“Caxias”) e dono da verdade pode, e tem sido substuída pela do instrutor mediador da construção do conhecimento, que lança mão de estudos de caso, buscando aproximar cada vez mais a teoria da prática, e das vivências dos alunos, futuros profissionais de segurança pública.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto, percebe-se que dificilmente a proposta da pedagogia da autogestão encontrará guarida no âmbito de organizações militares, pois elas são por natureza burocráticas, e, por isso caracterizadas por rígidas hierarquia e disciplina. Não há espaço, por exemplo para a ideia de “democracia” sugerida. Por outro lado, não deve ser tão rígida que não permita espaço para o compartilhamento de experiências, para questionamentos, dentro dos limites permitidos. Portanto, muito embora a pedagogia da autogestão pareça, em princípio, impraticável no contexto de formação do policial militar, e em sua prática profissional, seus princípios, não só podem ser aplicados, como devem sê-lo, com as devidas adequações a esse contexto organizacional. 

REFERÊNCIAS

NASCIMENTO, Cláudio. Experimentação autogestionária: autogestão da pedagogia/pedagogia da autogestão. Ensaio elaborado para a construção do Projeto Político Pedagógico da Rede dos Centros de Formação em Economia Solidária (CFES). s/a.

GALLO, Sílvio. Os limites de uma educação autogestionária: a experiência da pedagogia institucional. Pro-posições Vol. 8 nº 223. Março 1999.

WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal. IN: CAMPOS, E. (Org.). Sociologia da Burocracia. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

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