terça-feira, 4 de junho de 2013

Relação Direito versus Política em Habermas



Ainda na temática do Estado democrático de direito, a partir da perspectiva teórica de Habermas, compartilho nova resenha. Desta vez, com base em artigo de Aylton Barbieri DURÃO. Muitos conceitos são familiares, pois estão presentes nas resenhas anteriores, visto que a temática básica é a mesma: os fundamentos do Estado democrático de direito.

DURÃO, Aylton Barbieri. HABERMAS: Os fundamentos do estado democrático de direito. Trans/Form/Ação, São Paulo, 32 (10: 119-137, 2009).
 
O autor discute em seu artigo os fundamentos do estado democrático de direito, tendo como aporte teórico o pensamento de Habermas. A ideia que norteia a discussão é a relação entre direito e política, ou, numa expressão mais ampla: entre sistema jurídico e sistema político, e suas consequências, no contexto do estado democrático de direito.

Essa relação é marcada, de um lado, por uma tensão, pois tanto o direito quanto a política, possuem funções específicas e distintas, que, de certa forma, se contrapõem — por isto a tensão; de outro lado, no entanto, uma interdependência, visto que um precisa do outro, estabelecendo o que Habermas chama de nexo interno.

Esse nexo interno é constituído pelos nexos normativo e empírico, explicados a seguir:

O nexo normativo consiste no fato de que, apesar de possuírem funções próprias (distintas) o direito (sistema jurídico) e a política (o sistema político) se complementam mutuamente, ou seja, “o sistema jurídico precisa [...] da intervenção dos instrumentos de violência [coerção] que são oferecidos pelo poder político [administração]; da mesma forma, o sistema político [administração] necessita da colaboração do sistema jurídico para estabelecer fins coletivos de ação”. (p. 120).

O nexo empírico tem sua origem nas sociedades pre-estatais, em que a solução de conflitos interpessoais (função própria do direito) era baseada em valores religiosos compartilhados pela fé comum; e a formação da vontade coletiva (função própria da política) era influenciada pelo rei-sacerdote.

No estado democrático de direito acontece uma fusão desses dois nexos, conforme observado por Durão: “O estado de direito é o resultado da fusão, tanto empírica como normativa, entre direito e política”. (p. 121).  

Com o surgimento do Estado, a competência para dirimir os conflitos interpessoais lhe é atribuída, pois com ele “[...] surge uma burocracia estatal especializada em questões de administração pública e aplicação da justiça, capaz de implementar os programas políticos e a solução de conflitos de ação”. (p. 121). 


A partir de Habermas, Durão identifica a existência de três tipos de poder em um Estado democrático de direito, a saber:

O poder comunicativo, que é “constituído mediante os meios discursivos dispersos de uma opinião pública que pode chegar a um consenso sobre metas políticas em discursos pragmáticos, valores compartilhados em discursos éticos, etc.”

O poder administrativo, que detém o monopólio da violência institucionalizada, ou seja, o poder de coerção para fazer cumprir as leis. Por essa razão, deve ser mantido sob o controle da legalidade, e institucionalizar o poder comunicativo; e,

O poder social, exercido por grupos de interesses que buscam influenciar o legislativo e o executivo, manipulando a opinião pública, com o uso massivo da mídia, visando aprovar leis que os favoreçam, e projetos de seu interesse. A exemplo dos grandes empresários. 

Habermas adverte para a necessidade de se "combater" esse poder, visto que, como é óbvio, não representa necessariamente os interesses da comunidade como um todo. Por outro lado, ele ensina também que o povo pode lançar mão desse poder no sentido de forçar o Estado a cumprir seu papel.

Especificidades do direito 

Durão conceitua o direito como sendo “[...] um sistema normativo que lança mão da violência, na forma de coerção legalmente institucionalizada [porque] dispõe da capacidade de coagir os arbítrios privados”. (p. 120). Dessa forma, pode-se dizer que seu papel no Estado moderno é regular os conflitos interpessoais ou coletivos de ação. O direito, portanto, é o pólo normativo no estado democrático de direito.

Direitos fundamentais dividem-se em: direitos subjetivos e direitos políticos de participação e comunicação. Esses direitos “[...] como quaisquer outras leis do ordenamento jurídico, somente podem ser aprovados e sancionados pelas instituições políticas do estado de direito”. (p. 120).

Especificidades da política

A política é um sistema funcional regido pelo meio poder, e o seu papel é o de elaborar os programas coletivos de ação, estando intimamente ligada ao poder administrativo. Por essa razão Habermas considera a política o pólo instrumental no Estado de direito. 

O sistema político faz uso da violência (coerção) aprovada institucionalmente. É o “exercício da dominação legal” do Estado.

Conceitos recorrentes

Outra tensão existente no estado democrático de direito diz respeito à facticidade e à validade da norma/lei. Que a meu ver pode ser também expressa pelo binômio legalidade e legitimidade,  já que Habermas ensina que "As normas jurídicas são impostas [...] a autoridade política esclarece que uma norma entrou em vigor foi justificada suficientemente e faticamente aceita". (HABERMAS, 1997, p. 195)

A facticidade nesse contexto pode ser explicada como o assentimento de que a norma/lei é um fato social e que deve ser obedecido para se evitar as sanções legalmente impostas.

Nesse sentido, os destinatários das normas jurídicas podem agir de acordo com a razão estratégica ou a razão comunicativa, nos níveis: normativo, do sistema de direitos, e do Estado democrático de direito.

Ao agir de acordo com a razão estratégica, o agente, mesmo não concordando com a validade da norma/lei, procura não violá-la para não sofrer suas sanções.

A racionalidade comunicativa, ou razão comunicativa consiste na faculdade que tem o agente de determinada comunidade de direito de avaliar a legitimidade, portanto, a validade de determinada norma/lei, e obedecê-la com base nessa avaliação e não por temer as consequências de sua violação.

Exemplifico esses conceitos utilizando a lei que obriga o uso do capacete por motoqueiros. Esclarecendo, há quem use o capacete para evitar ser multado, o que corresponde à racionalidade estratégica; por outro lado, há quem use porque entende que o capacete pode evitar sua morte em um acidente; portanto, conclui que a lei é boa e legítima, correspondendo à racionalidade comunicativa.

No estado de direito o uso da “violência” para dirimir conflitos de interesse foi delegado ao Estado, que passou a deter o monopólio da violência institucionalizada. E aqui há outra tensão, que é a possibilidade de o Estado, (através do pólo político/administrativo) extrapolar o pólo normativo (direito). Pólo Poder (política), e Pólo Normativo (direito).

Durão destaca que, para explicar o papel do Estado na sociedade moderna, Habermas desenvolveu a teoria da ação comunicativa. (p. 123). Essa teoria está inserida no contexto da sociedade complexa, conceito a que Habermas chega mediante o “pensamento sistêmico”, para discutir a questão da tensão entre direito e política no Estado democrático de direito.

A partir dessa perspectiva, ele argumenta que a sociedade complexa enfrenta um fenômeno que denomina de dilema estrutural. Esse dilema consiste na existência de dois mundos: O mundo da vida, e o mundo dos Sistemas Sociais especializados (funcionais).

O mundo da vida diz respeito ao cotidiano do agente social e suas interações com outros agentes. Nesse mundo, os agentes sociais orientam-se pela racionalidade comunicativa, constituída pela linguagem ordinária, reivindicação de validade ilocutoriamente [1] presentes no ato de fala, integração social, e ações coordenadas pela solidariedade.

O mundo dos Sistemas Sociais especializados (Sistemas Funcionais) é caracterizado pelo comportamento dos agentes sociais motivado pelo êxito. O mercado e a política são os dois sistemas em evidência nesse mundo. Cada um possui uma lógica própria que orienta a conduta dos agentes sociais; dessa forma, a lógica do êxito financeiro (dinheiro) coordena as ações dos agentes no mercado; enquanto a lógica do poder, coordena suas ações no sistema político.

As lógicas desses sistemas sociais tendem a envolver politicamente os agentes sociais de tal forma, que estes passam a ter encolhido seu “espaço para a racionalidade comunicativa”, em outras palavras, tende a calar as vozes reivindicadoras.

Ilustro esse conceito com os exemplos dos políticos que, antes de chegar ao poder, são militantes no “mundo da vida”; valem-se amplamente do poder comunicativo, apresentando-se como “verdadeiros” representantes dos anseios do povo, porém, ao se verem enredados pelo poder através da política e do poder econômico, tendem a mudar seus discursos, ou mesmo a calar-se.

Soberania popular como procedimento 

Para Habermas ainda existe uma disputa entre direitos humanos e soberania popular. Essa tensão é explicada pelo viés da filosofia do sujeito, que é um legado da filosofia da consciência.

Habermas propõe o conceito procedimental de soberania popular como solução para a tensão entre direitos humanos e soberania popular. Para ele, direitos humanos e soberania popular são cooriginários. (p. 126). Dessa forma, se contrapõe às concepções do sujeito privado de Locke (concepção de que o homem foi criado por Deus com determinados direitos naturais), e do sujeito moral de Kant (que possui autonomia moral).

Dentro do conceito procedimental de soberania, Habermas introduz a utopia da sociedade de comunicação livre, em contraposição ao que ele chama de “extenuação da utopia do trabalho livre”, postulado pelo liberalismo.

Pelo princípio procedimental de soberania popular, busca-se estabelecer um equilíbrio e flexibilidade nas relações entre os agentes sociais (cidadãos), ou seja, estes “têm de se atribuir reciprocamente [...] os direitos subjetivos fundamentais que garantem as liberdades individuais, bem como os direitos políticos de participação e comunicação”. (p. 126).

É com base na teoria do poder que Habermas explica o princípio procedimental da soberania popular, ou seja, “Todo poder político tem de emanar do poder comunicativo que surge da liberdade comunicativa dos cidadãos”. (p. 129), os quais são capazes de chegar ao entendimento no mundo da vida.” (p. 126). Lembrando que, esse poder comunicativo deve ser institucionalizado pelo direito.

Essa postura (de “ação comunicativa”) pressupõe que as relações sociais sejam “desprovidas de subjetividade”, em outras palavras, os cidadãos sejam capazes de “formar a opinião e a vontade na esfera pública, fazendo uso de sua liberdade comunicativa mediante a capacidade de chegar ao entendimento que [...] dispõem no mundo da vida”. (p. 126). Sabemos que esse ideal é tão difícil de ser alcançado, que imagino seja por isso que Habermas o chama de utopia.

Finalmente, o autor apresenta alguns princípios do Estado democrático de direito que chamo de "estratégicos".

Considerando o contexto da sociedade complexa, que inviabiliza a reunião dos cidadãos em assembleias, para exercerem seu poder comunicativo, “Habermas considera que é indispensável garantir um amplo espaço de participação para os cidadãos no plano da sociedade civil”. (p. 130). Dessa concepção advêm o princípio da garantia de espaços públicos autônomos, e o princípio parlamentar.

Outro princípio fundamental é o da legalidade do governo  (do poder administrativo), considerando o fato de que “o direito possibilitou a intromissão burocrática no mundo da vida das pessoas privadas”. (p. 129), de tal forma, que há possibilidade de que o poder administrativo se autoprograme e escolha “programas de ação independente de participação dos cidadãos”. (p. 129).

Daí outra característica importante no Estado democrático de direito, que é a Constituição de poderes separados, que visa a garantir que o poder administrativo reproduza o poder comunicativo gerado pelos cidadãos. (p. 131). Dessa forma, pressupõe-se, por exemplo, “[...] a estrita vinculação do executivo à lei produzida pelo o legislativo”. (p. 131), que se traduz no “[...] princípio de proibição da ilegalidade dentro do Estado”. (p. 131).

Os direitos fundamentais protegidos contra outros sujeitos privados e contra a intromissão do Estado (postulado caro ao Liberalismo) permitem o florescimento de uma população acostumada à liberdade e à prática da comunicação na esfera pública. Donde emerge o princípio da separação entre o estado e a sociedade.

Esse princípio tem ainda a finalidade de neutralização do poder social dos grandes grupos de interesse, evitando sua penetração “no seio da própria esfera pública, como nas instituições do estado de direito e, assim, determinar o poder administrativo.” (p. 131).

Sabemos, no entanto, que essa é uma guerra de poderosos, que pode ser assemelhada a uma “queda de braços”.
Vocabulário
[1] Ilocutório -  "Designativo do ato de fala, em que o falante introduz uma intenção de realizar um objetivo comunicativo, como perguntar, pedir, aconselhar, avisar, prometer, etc." Fonte: Infopédia

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Um abraço fraterno.  

2 comentários:

  1. Prezado Colega Daniel,
    Muito bom o seu texto. Pena que a correria não me permitiu acessar o seu blog antes da prova da professora Edna. Garanto que teriam sido mais ricas as respostas apresentadas por mim.
    Abraços e Boa Sorte.

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    1. Caríssima Nadja, boa noite.
      Agradeço pelo comentário positivo, e espero que continue visitando o blog (que é nosso), pois continuarei postando material pertinente ao MPGOA, na esperança de que seja útil, não só para o nosso desempenho acadêmico, mas também para o nosso desempenho como gestores/educadores.
      Grande abraço

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