Ainda na temática do Estado democrático de direito, a partir da perspectiva teórica de Habermas, compartilho nova resenha. Desta vez, com base em artigo de Aylton Barbieri DURÃO. Muitos conceitos são familiares, pois estão presentes nas resenhas anteriores, visto que a temática básica é a mesma: os fundamentos do Estado democrático de direito.
DURÃO, Aylton Barbieri. HABERMAS: Os fundamentos do estado
democrático de direito. Trans/Form/Ação, São Paulo, 32 (10: 119-137, 2009).
O autor discute em seu artigo os
fundamentos do estado democrático de direito, tendo como aporte teórico o
pensamento de Habermas. A ideia que norteia a discussão é a relação entre
direito e política, ou, numa expressão mais ampla: entre sistema jurídico e
sistema político, e suas consequências, no contexto do estado democrático de
direito.
Essa relação é marcada, de um lado,
por uma tensão, pois tanto o direito quanto a política, possuem funções
específicas e distintas, que, de certa forma, se contrapõem — por isto a
tensão; de outro lado, no entanto, uma interdependência, visto que um precisa
do outro, estabelecendo o que Habermas chama de nexo interno.
Esse nexo interno é constituído pelos nexos normativo
e empírico, explicados a seguir:
O nexo normativo consiste no fato de que, apesar de possuírem funções próprias (distintas) o
direito (sistema jurídico) e a política (o sistema político) se complementam
mutuamente, ou seja, “o sistema jurídico precisa [...] da intervenção dos
instrumentos de violência [coerção] que são oferecidos pelo poder político
[administração]; da mesma forma, o sistema político [administração] necessita
da colaboração do sistema jurídico para estabelecer fins coletivos de ação”.
(p. 120).
O nexo empírico tem sua origem nas sociedades pre-estatais, em que a solução de
conflitos interpessoais (função própria do direito) era baseada em valores
religiosos compartilhados pela fé comum; e a formação da vontade coletiva
(função própria da política) era influenciada pelo rei-sacerdote.
No estado democrático de direito
acontece uma fusão desses dois nexos, conforme observado por Durão: “O estado
de direito é o resultado da fusão, tanto empírica como normativa, entre direito
e política”. (p. 121).
Com o surgimento do Estado, a
competência para dirimir os conflitos interpessoais lhe é atribuída, pois com
ele “[...] surge uma burocracia estatal especializada em questões de
administração pública e aplicação da justiça, capaz de implementar os programas
políticos e a solução de conflitos de ação”. (p. 121).
A partir de Habermas, Durão
identifica a existência de três tipos de poder em um Estado democrático de
direito, a saber:
O poder comunicativo, que é “constituído mediante os meios discursivos dispersos
de uma opinião pública que pode chegar a um consenso sobre metas políticas em
discursos pragmáticos, valores compartilhados em discursos éticos, etc.”
O poder administrativo, que detém o monopólio da violência institucionalizada, ou
seja, o poder de coerção para fazer cumprir as leis. Por essa razão, deve ser
mantido sob o controle da legalidade, e institucionalizar o poder comunicativo; e,
O poder social,
exercido por grupos de interesses que buscam influenciar o legislativo e o executivo,
manipulando a opinião pública, com o uso massivo da mídia, visando aprovar leis
que os favoreçam, e projetos de seu interesse. A exemplo dos grandes
empresários.
Habermas adverte para a necessidade de se "combater" esse poder, visto que, como é
óbvio, não representa necessariamente os interesses da comunidade como um todo.
Por outro lado, ele ensina também que o povo pode lançar mão desse poder no sentido de forçar o
Estado a cumprir seu papel.
Especificidades do direito
Durão conceitua o direito como sendo
“[...] um sistema normativo que lança mão da violência, na forma de coerção
legalmente institucionalizada [porque] dispõe da capacidade de coagir os
arbítrios privados”. (p. 120). Dessa forma, pode-se dizer que seu papel no
Estado moderno é regular os conflitos interpessoais ou coletivos de ação. O
direito, portanto, é o pólo normativo no estado democrático de direito.
Direitos fundamentais dividem-se em: direitos subjetivos e direitos políticos de
participação e comunicação. Esses direitos “[...] como quaisquer outras leis do
ordenamento jurídico, somente podem ser aprovados e sancionados pelas
instituições políticas do estado de direito”. (p. 120).
Especificidades da política
A política é um sistema funcional
regido pelo meio poder, e o seu
papel é o de elaborar os programas coletivos de ação, estando intimamente
ligada ao poder administrativo. Por essa razão Habermas considera a política o pólo
instrumental no Estado de direito.
O sistema político faz uso da violência (coerção) aprovada institucionalmente. É o
“exercício da dominação legal” do Estado.
Conceitos recorrentes
Outra tensão existente no estado
democrático de direito diz respeito à facticidade
e à validade da norma/lei. Que a meu
ver pode ser também expressa pelo binômio legalidade
e legitimidade, já que Habermas ensina que "As normas jurídicas são impostas [...] a autoridade política esclarece que uma norma entrou em vigor foi justificada suficientemente e faticamente aceita". (HABERMAS, 1997, p. 195)
A facticidade nesse contexto pode
ser explicada como o assentimento de que a norma/lei é um fato social e que
deve ser obedecido para se evitar as sanções legalmente impostas.
Nesse sentido, os destinatários das normas
jurídicas podem agir de acordo com a razão
estratégica ou a razão comunicativa, nos níveis: normativo, do sistema de direitos, e do Estado
democrático de direito.
Ao agir de acordo com a razão estratégica, o agente, mesmo não
concordando com a validade da norma/lei, procura não violá-la para não sofrer
suas sanções.
A racionalidade comunicativa, ou
razão comunicativa consiste na faculdade que tem o agente de determinada
comunidade de direito de avaliar a legitimidade, portanto, a validade de
determinada norma/lei, e obedecê-la com base nessa avaliação e não por temer as
consequências de sua violação.
Exemplifico esses conceitos utilizando a lei que obriga o uso do capacete por motoqueiros. Esclarecendo, há quem use o capacete
para evitar ser multado, o que corresponde à racionalidade estratégica; por
outro lado, há quem use porque entende que o capacete pode evitar sua morte em
um acidente; portanto, conclui que a lei é boa e legítima, correspondendo à racionalidade
comunicativa.
No estado de direito o uso da
“violência” para dirimir conflitos de interesse foi delegado ao Estado, que
passou a deter o monopólio da violência institucionalizada. E aqui há outra
tensão, que é a possibilidade de o Estado, (através do pólo
político/administrativo) extrapolar o pólo normativo (direito). Pólo Poder
(política), e Pólo Normativo (direito).
Durão destaca que, para explicar o
papel do Estado na sociedade moderna, Habermas desenvolveu a teoria da ação comunicativa. (p. 123).
Essa teoria está inserida no contexto da sociedade complexa, conceito a que
Habermas chega mediante o “pensamento sistêmico”, para discutir a questão da
tensão entre direito e política no Estado democrático de direito.
A partir dessa perspectiva, ele argumenta
que a sociedade complexa enfrenta um fenômeno que denomina de dilema estrutural. Esse dilema consiste
na existência de dois mundos: O
mundo da vida, e o mundo dos Sistemas Sociais especializados (funcionais).
O mundo da vida diz respeito ao cotidiano do agente social e suas interações com outros
agentes. Nesse mundo, os agentes sociais orientam-se pela racionalidade
comunicativa, constituída pela linguagem ordinária, reivindicação de validade
ilocutoriamente [1] presentes no ato de fala, integração social, e ações
coordenadas pela solidariedade.
O mundo dos Sistemas Sociais especializados (Sistemas Funcionais) é caracterizado pelo comportamento
dos agentes sociais motivado pelo êxito. O mercado e a política são os dois
sistemas em evidência nesse mundo. Cada um possui uma lógica própria que
orienta a conduta dos agentes sociais; dessa forma, a lógica do êxito
financeiro (dinheiro) coordena as ações dos agentes no mercado; enquanto a
lógica do poder, coordena suas ações no sistema político.
As lógicas desses sistemas sociais
tendem a envolver politicamente os agentes sociais de tal forma, que estes
passam a ter encolhido seu “espaço para a racionalidade comunicativa”, em
outras palavras, tende a calar as vozes reivindicadoras.
Ilustro esse conceito
com os exemplos dos políticos que, antes de chegar ao poder, são militantes no
“mundo da vida”; valem-se amplamente do poder comunicativo, apresentando-se
como “verdadeiros” representantes dos anseios do povo, porém, ao se verem
enredados pelo poder através da política e do poder econômico, tendem a mudar
seus discursos, ou mesmo a calar-se.
Soberania popular como procedimento
Para Habermas ainda existe uma
disputa entre direitos humanos e soberania popular. Essa tensão é explicada pelo
viés da filosofia do sujeito, que é um legado da filosofia da consciência.
Habermas propõe o conceito procedimental
de soberania popular como solução para a tensão entre direitos humanos e
soberania popular. Para ele, direitos humanos e soberania popular são
cooriginários. (p. 126). Dessa forma, se contrapõe às concepções do sujeito
privado de Locke (concepção de que o homem foi criado por Deus com determinados
direitos naturais), e do sujeito moral de Kant (que possui autonomia moral).
Dentro do conceito procedimental de
soberania, Habermas introduz a utopia da
sociedade de comunicação livre, em contraposição ao que ele chama de
“extenuação da utopia do trabalho livre”, postulado pelo liberalismo.
Pelo princípio procedimental de
soberania popular, busca-se estabelecer um equilíbrio e flexibilidade nas
relações entre os agentes sociais (cidadãos), ou seja, estes “têm de se
atribuir reciprocamente [...] os direitos subjetivos fundamentais que garantem
as liberdades individuais, bem como os direitos políticos de participação e
comunicação”. (p. 126).
É com base na teoria do poder que
Habermas explica o princípio procedimental da soberania popular, ou seja, “Todo
poder político tem de emanar do poder comunicativo que surge da liberdade
comunicativa dos cidadãos”. (p. 129), os quais são capazes de chegar ao
entendimento no mundo da vida.” (p. 126). Lembrando que, esse poder comunicativo deve ser
institucionalizado pelo direito.
Essa postura (de “ação comunicativa”)
pressupõe que as relações sociais sejam “desprovidas de subjetividade”, em
outras palavras, os cidadãos sejam capazes de “formar a opinião e a vontade na
esfera pública, fazendo uso de sua liberdade
comunicativa mediante a capacidade de chegar ao entendimento que [...]
dispõem no mundo da vida”. (p. 126). Sabemos que esse ideal é tão difícil de ser alcançado,
que imagino seja por isso que Habermas o chama de utopia.
Finalmente, o autor apresenta alguns princípios do Estado democrático de direito que chamo de "estratégicos".
Considerando o contexto da sociedade
complexa, que inviabiliza a reunião dos cidadãos em assembleias, para exercerem
seu poder comunicativo, “Habermas considera que é indispensável garantir um
amplo espaço de participação para os cidadãos no plano da sociedade civil”. (p.
130). Dessa concepção advêm o princípio
da garantia de espaços públicos autônomos, e o princípio parlamentar.
Outro princípio fundamental é o da legalidade
do governo (do poder administrativo),
considerando o fato de que “o direito possibilitou a intromissão burocrática no
mundo da vida das pessoas privadas”. (p. 129), de tal forma, que há
possibilidade de que o poder administrativo se autoprograme e escolha
“programas de ação independente de participação dos cidadãos”. (p. 129).
Daí outra característica importante
no Estado democrático de direito, que é a Constituição de poderes separados,
que visa a garantir que o poder administrativo reproduza o poder comunicativo
gerado pelos cidadãos. (p. 131). Dessa forma, pressupõe-se, por exemplo, “[...]
a estrita vinculação do executivo à lei produzida pelo o legislativo”. (p. 131),
que se traduz no “[...] princípio de
proibição da ilegalidade dentro do Estado”. (p. 131).
Os direitos fundamentais protegidos
contra outros sujeitos privados e contra a intromissão do Estado (postulado
caro ao Liberalismo) permitem o florescimento de uma população acostumada à
liberdade e à prática da comunicação na esfera pública. Donde emerge o princípio da separação entre o estado e a
sociedade.
Esse princípio tem ainda a
finalidade de neutralização do poder social dos grandes grupos de interesse,
evitando sua penetração “no seio da própria esfera pública, como nas
instituições do estado de direito e, assim, determinar o poder administrativo.”
(p. 131).
Sabemos, no entanto, que essa é uma
guerra de poderosos, que pode ser assemelhada a uma “queda de braços”.
Vocabulário
[1] Ilocutório - "Designativo do ato de fala, em que o falante introduz uma intenção de realizar um objetivo comunicativo, como perguntar, pedir, aconselhar, avisar, prometer, etc." Fonte: Infopédia
Prezado Colega Daniel,
ResponderExcluirMuito bom o seu texto. Pena que a correria não me permitiu acessar o seu blog antes da prova da professora Edna. Garanto que teriam sido mais ricas as respostas apresentadas por mim.
Abraços e Boa Sorte.
Caríssima Nadja, boa noite.
ExcluirAgradeço pelo comentário positivo, e espero que continue visitando o blog (que é nosso), pois continuarei postando material pertinente ao MPGOA, na esperança de que seja útil, não só para o nosso desempenho acadêmico, mas também para o nosso desempenho como gestores/educadores.
Grande abraço